d.b.

Uma coisa que eu paro pra pensar, pela minha infância, não era pra ter acontecido o que aconteceu, eu ter me transformado na pessoa que me transformei.

Eu sempre fui uma pessoa tranquila desde criança. Minha família sempre me deu apoio, sempre tive o apoio do meu pai e da minha mãe. Só que depois de um tempo, depois que meu pai e a minha mãe se separou, eu comecei a se relacionar mais com o mundo, com as coisas errada. Eu surfava, andava de skate, sempre com meu pai e minha mãe perto pra falar comigo, pra me bater, pra brigar comigo, pra me ensinar as coisas, só que aí depois de um tempo, tudo mudou.

Quando meus pais se separaram fui morar com a minha mãe.

Os meus pais me davam quase tudo que eu queria, mas não podiam fazer o melhor. Eu comecei a passar uns perrengue, passar fome. Comecei a ver as coisa muito sinistras, às vezes eu queria comer um negócio e não tinha.

Às vezes pra almoçar meu pai tinha que fazer uma “correria” pra botar um ovo pra nós comer, muito mal um arroz, um feijão; aí foi que eu comecei a criar ódio. Desde criança eu sempre fui cheio de raiva mesmo. Eu sempre tive o organismo um tanto irado, tipo, o meu sistema nervoso é muito nervoso, qualquer coisa eu me estresso, porque desde menor os caras me dava mocão, falava vários bagulhos pra mim, eu ficava guardando só pra mim. Hoje em dia eu tenho todo ódio pra dar.

Quando eu era menor eu tinha medo de fazer as coisa que eu faço. Hoje em dia eu não tenho mais não, hoje em dia eu faço mesmo.

Minha relação mais forte é com a minha tia, que é praticamente minha segunda mãe. Ela sempre teve comigo em todos os momentos. Momento bom, momento ruim, triste, feliz, ela sempre teve comigo. Ela gravou minha vida, ela faz parte da minha vida. Quando tomei um tiro ela tava comigo no hospital, agora quando rodei ela vem me visitar às vezes, quando pode. Quando operei a hérnia umbilical eu fiquei na casa dela. Minha mãe trabalhava no centro da cidade, eu ficava chorando que minha mãe me deixava lá na casa da minha tia, chorava pra caramba, mas sempre fui. Pô, minha tia sempre marcou minha vida. Minha tia, minha avó e meu avô.

Eu tenho uma filha de um ano e... ela vai fazer dois ano agora; e um filho que é com outra mulher.

Essa filha mora no morro, mas eu não criei ela, alguém cria ela, um maluco lá do morro cria ela. Às vezes eu ia, via ela, pegava no colo, brincava com ela, mas me chamar de pai mesmo, ela não me chama não  E tenho um filho de 10 meses. Sendo que meu filho eu crio, já é mais comigo, já vejo ele. Eu tenho mais, é... conexão com ele. Eu se comunico mais com ele. Já minha filha não, minha filha já é mais com a mãe e com o outro pai dela, o pai de criação.

Na última vez que o meu filho veio na visita, foi a primeira vez que ele dormiu no meu colo, que eu botei ele pra dormir.

Ele tava chorando pra lá e pra cá, agoniado, aí, tipo, eu coloquei ele pra dormir, ele dormiu no meu colo. Foi maneiro, nunca fiz isso, nunca tive uma oportunidade de botar meu filho pra dormir, ver meu filho brincando. Meu filho veio aí e eu como, aproveitei.

Ser pai é tipo meio desesperador, às vezes tu acha que é uma coisa, mas não, é outra. E é responsabilidade, porque você tá cuidando de uma vida, você não tá cuidando de uma boneca ou de um boneco seu, dum urso de pelúcia.

É uma vida que como nós já passamo por muitas coisas: febre, é... passar mal e é tudo isso. E tem que dar tudo direitinho pra não dar nada errado. Filho é responsabilidade. E é bom que às vezes tu vê que pelo menos aquilo dali já é um uma sinal de parar, pra tua vida, porque quando tu olha teu filho, tua filha tu... pô, é meu filho! mas já pensou depois, amanhã eu aí e meu filho vai perguntar pra mãe dele quem era o pai dele, “meu pai, cadê meu pai?” aí ela vai falar “teu pai morreu”, “aonde, como?” “morreu roubando, morreu traficando.” Ou então, mais pra frente vou rodar na “de maior”, pegar 10 anos, aí, tipo, meu filho vai crescer “e meu pai, mãe?”, “teu pai tá preso”, “deixa eu ver, me leva pra ver”. Mas meu filho vai me ver só poucos dias, não vou poder dar aquele rolê com ele, brincar com ele, poder ensinar as coisas certa pra ele.

Não é maneiro ficar aqui dentro, privado da liberdade, sei lá.

Eu tô passando um tempo aqui, tô ficando jupirado, tô começando a... minha cabeça tá começando a virar. Às vezes eu penso um negócio, fico baleado, fico com a cabeça tonteada, ou já não consigo pensar, falo sozinho umas maluquice, bato a cabeça na parede, só pra passar o tempo mesmo. Mas às vezes alguém me estressa e eu fico com raiva. Nem vejo direito meu filho, minha filha. Minha filha nem vejo mais, meu filho às vezes vem.

Tive um sonho ontem que me deixou atordoado.

A minha namorada não tá vindo me ver, aí eu sonhei que ela tava me traindo. Sonhei que eu tive que pegar ela, bater nela, dar uma agredida nela por causa que quando nós tá no bem-bom, nós tá com dinheiro no bolso, ouro no pescoço, carro, moto, ela tá com nós; mas quando nós tá preso, nós tá na pior, nós tá aqui dentro privado da liberdade, privado dos nossos pensamentos, ela lá fora tá com outro?! Aí eu tive que pegar mesmo.

E uma vez que eu sonhei também com a minha mãe e com a minha tia. A minha tia veio numa semana, aí minha mãe veio noutra. Minha tia e minha mãe tava mó tempão sem vir.

Tenho um ódio eterno que não sei por causa de que.

As única pessoa que eu num consigo sentir ódio é da minha família. Agora de quem entrar no meu caminho querendo fazer eu sentir ódio, eu sinto.

Ter passado fome foi a coisa que me deu mais raiva, que ficou mais gravado na minha mente mesmo, porque cheguei a estontear e voltar a fazer o que não era pra mim ter feito. Meu ódio não nasceu só de passar perrengue, mas também muitas das pessoas que me batia. Eu não podia fazer nada porque eu era indefeso, praticamente. As pessoas tudo falava que eu ia crescer revoltado. Aí me vê hoje em dia revoltado, me vê hoje em dia portando um fuzil, me vê hoje em dia roubando, aí quer como? Quer falar também? Quer me julgar? Sabe do meu passado, eles conhece. E sabe causa de que eu faço isso. Qual o motivo que eu pratico o que eu pratico hoje em dia.

Eu gosto dessa vida que eu levo. Mas essa vida que eu levo não pode ser levada, porque uma hora acaba. Eu sei que... a vida é... um.... é um destino que... vai ter um destino final: nosso destino é a morte. Eu sei, nós um dia vai morrer. Mas nós fazendo isso, um dia vai morrer mais rápido ainda.

Nós vive o que nós quer viver, nós aproveita; às vezes não, às vezes sim. Mas aí acaba sempre morrendo uma hora.

O que me deixa mais feliz mesmo é tá com meu filho, mais nada.

Na beira da praia, fumando um baseado, extravasando, abrindo a mente um pouco, pensando muito na vida, e só isso mesmo, mais nada.

O que me deixa mais triste mesmo é não tá com meu filho. Não tá do lado da minha família, não poder ver minha família, às vezes não poder olhar pra mim e falar “caraca! ainda não sou ninguém, sou só uma pessoa normal, como todo mundo”.

Eu tinha um sonho sim. Meu sonho era ser fuzileiro naval, ou então PQD. Mas só que hoje em dia não posso mais, porque tomei o tiro nas costas e tenho uma bala alojada atrás do coração e do pulmão. Aí não posso mais.

E outro sonho, um sonho de antigamente, que eu ainda vou tentar ser, é medico. Vou tentar fazer uma faculdade de medicina depois que eu terminar meus estudo. Parei na quarta série, não tava tendo mais tempo pra estudar; mas aí, depois, quando eu chegar numa série, num certo ponto, eu já vou fazer curso de medicina.

Outro sonho que eu tinha também era ser corredor de formula 1, mas uma vez o cara falou pra mim que corredor de fórmula 1 é só pra quem tem dinheiro, então não vou nem tentar.

Daqui a 10 anos eu me vejo fazendo acho que nada, porque às vezes eu não sei o dia de amanhã. Não sei se daqui a 10 anos eu vou tá vivo,

mas eu pretendo tá médico já, virado médico... ainda tá roubando mesmo... ah, ser médico mas.. quando eu quiser dar uma roubada, mas muitas das vezes não, não vai acontecer não. Quando eu ver que tá entrando dinheiro mesmo, na minha profissão de médico, eu já vou tá tranquilo.

Às vezes, fico: pô, cara! Será que isso tudo aconteceu mesmo? Será que toda minha vida, tudo isso que eu já passei aconteceu, ou será que isso é tudo um monte de mentira? Um monte de mentira, de besteira, de ilusão? porque o que nós tamo vivendo aqui, daqui uma hora vai passar, nunca mais vai existir. Mas, pô, às vezes eu fico assim imaginando, pô, sei lá mané. Às vez a minha família fala pra mim: “pô, tu não tem cara de que faz isso...” Mas às vezes não é cara, é o coração. A pessoa não precisa ter rosto, ter cara ruim, só disposição e ódio! Tem que ter um coração ruim, se tiver mente fraca, nem adianta. 

Tem que ser coração de pedra, nem coração de pedra total, mas pelo menos a metade do teu coração, 70% tem que ser de pedra, o resto tem que ser de carne pra tu sobreviver.

 

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