o projeto

Ao longo de quatro meses convivemos com meninos e meninas que estavam cumprindo medida socioeducativa no DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) do Rio de Janeiro. Para que pudessemos construir uma relação de proximidade e confiança, oferecemos uma oficina de fotografia artesanal pinhole1.

Foram duas oficinas, uma em uma unidade de internação masculina e outra em uma unidade feminina. Nas oficinas nos acompanhavam quatro monitores, moradores da Maré (Rio de Janeiro) e participantes do projeto Mão na Lata2. Com as meninas as monitoras foram Géssica Nunes e Juliana de Oliveira, e com os meninos os monitores foram Rafael Franco e Jailton Nunes.

Em cada unidade levamos um laboratório fotográfico portátil, construído especialmente para este projeto. É uma estrutura simples, com uma cobertura que veda a entrada de luz (confeccionada pela Claudinha, uma costureira de Nilópolis que fez um trabalho lindo); por dentro, o Lab é equipado com duas bancadas e todos os apetrechos de um laboratório de revelação fotográfica.

 

Todo o processo fotográfico foi experiênciado pelos participantes das oficinas: a construção das câmeras, a revelação do papel fotográfico no laboratório, a edição das imagens. Nos encontramos durante algumas horas, duas vezes na semana, ao longo de dois meses. Durante esses encontros coletivos instigamos os meninos e meninas a voltarem o olhar para si e construírem autorretratos, que buscavam refletir o que estavam sentindo e vivendo naquele contexto.

 

1. Pinhole, que em inglês quer dizer furo de agulha, é uma técnica fotográfica em que podemos construir uma câmera de forma artesanal e a entrada da luz se dá por um furinho do tamanho de uma agulha. Durante as oficinas os participantes construíram suas próprias câmeras fotográficas com latas recicladas. 

 

As saídas fotográficas

Fomos entendendo aos poucos a dinâmica das “saídas fotográficas” nesse contexto de privação de liberdade; a coreografia e o gestual pré-determinados, impostos em nome da ordem e da obediência, eram constantemente rompidos com as possibilidades abertas pelo ato fotográfico.

Nossa circulação pelo espaço, muitas vezes, rompia a lógica da cabeça baixa, do andar em fila com a mão pra trás, da necessidade compulsória de demonstração de submissão por parte dos jovens. Os meninos e meninas seguravam uma lata-câmera na mão e muitas vezes um tripé. Deitavam no chão para fazer imagens, simulavam fugas pelo muro para falar do desejo de liberdade, colaboravam uns com os outros para realizar suas fotografias.

Nas saídas éramos acompanhados pelos agentes, em espaços delimitados. Nos revezávamos indo com 2 ou 3 participantes, enquanto os outros ficavam na sala.

Em uma das saídas um agente nos pediu que não ficássemos no meio do pátio e nos concentrássemos nos cantos, pois do prédio ao lado, e apontou para um prédio a poucos metros de onde estávamos, volta e meia, algum membro de facção rival atirava nos meninos que passavam.

 

A oficina com as meninas aconteceu no campus da Coordenação de Educação, Cultura, Esporte e Lazer (Cecel), na Ilha do Governador. Elas eram deslocadas da unidade de internação para o campus, que é um ambiente com mais recursos visuais, com árvores, e um jardim. Já a oficina com os meninos aconteceu na própria unidade de internação. Lá há pouca vegetação e ambientes externos, éramos cercados por muitos muros, paredes e grades. Num certo sentido, foi mais desafiador para os meninos imaginar e criar imagens neste contexto, eles tiveram que ser mais imaginativos, por terem menos possibilidade e variedade de ambientes.

 

As sessões de escuta

Ao longo do período que aconteceram as oficinas, em dias que não havia aula, fizemos encontros com cada um dos participantes; eram sessões de escuta individuais, em que durante horas somente uma de nós conversávamos sobre a vida de cada um, seus medos, anseios, os pais, os filhos, as cenas que marcaram e o que mais quisessem contar. Alguns quiseram cantar, outros choraram, alguns fizeram longos silêncios, outros não queriam parar de falar. Ao final de cada sessão de escuta, era colocado um espelho diante deles, e cada um se descrevia, como se desenhasse seu próprio corpo com palavras. Percebemos que de algum modo essas sessões de escuta eram terapêuticas, na medida que eram, além da escuta que fazíamos deles, uma escuta que eles faziam de si. 

Registramos todas as nossas conversas em áudio. Antes de começarmos as sessões, era explicado para cada menino e menina que a conversa seria gravada, que elas seriam editadas e que depois faríamos um site e uma instalação sonora, uma cabine em que convidaríamos pessoas a entrarem e ouvirem os relatos que foram gravados. Todos concordaram em expor as conversas.

A edição dos áudios foi um trabalho extenso e delicado; foram muitas escolhas e decisões que tivemos que tomar. Sobretudo, foi um trabalho reflexivo sobre os limites éticos da exposição das intimidades que nos foram reveladas. Por um lado, acreditamos na pertinência de expor os relatos/retratos que os meninos e meninas nos confiaram; é como se cedessemos o lugar de ouvinte para outras pessoas se aproximarem e sentarem-se a frente de cada um deles, para ver e ouvir o que eles têm a dizer. Por outro lado, é dificil sentir-se completamente a vontade em expor o que nos foi confiado, mesmo com a aprovação prévia de cada um. É difícil escapar de uma sensação ambígua, porém, tentamos confiar na importância dessa exposição que se justifica pela intenção de fazer reverberar essas histórias e essas vozes quase sempre silenciadas e/ou ignoradas. Gostaríamos de agradecer a cada um deles pela partilha de suas histórias.

Os áudios gravados das conversas foram transcritos e também editados. Nos deparamos com o desafio de manter no texto escrito a fluência, a cadência, os ritmos, as intenções e as características das falas de cada menino e menina. Em vários trechos optamos por interferir na transcrição Ipsis Litteris, pois ela resultava ilegível, uma vez que não dava conta da comunicação da fala. Essas interferências foram sobretudo nas escolhas da pontuação e na supressão da repetição de palavras.  Tentamos interferir o mínimo possível, tendo como critério manter as características da fala e a legibilidade da leitura. Na edição, suprimimos as descrições das infrações cometidas e toda informação que pudesse revelar a identidade dos meninos e meninas, como locais de origem, nomes próprios de familiares e etc. 

 

Durante o tempo de convívio com esses adolescentes, recém saídos da infância, pudemos ver, por meio de suas histórias, o desamparo e a violência social a qual são submetidos desde muito cedo. Como L, que nos disse, depois de ter tentado o suicídio: "já tô cansado de viver, tô desgostoso da vida tia, minha vida não leva a nada não".

Gostariamos de somar aqui uma pergunta, às perguntas feitas por eles durante nossos encontros: Quando conseguiremos construir uma coletividade em que todas as crianças e adolescentes sejam verdadeiramente estimuladas a desenvolverem as suas potências? Quando entenderemos que essa responsabilidade é de todos nós?

As práticas poéticas e a invenção de si, são modos de subverter a lógica do aniquilamento das subjetividades desses jovens. Nesse sentido, a narrativa de imagens, ou a imaginação oriundas das imagens latentes que os jovens internos do DEGASE produziram, tanto as imagens verbais quanto as imagens pinhole, convertem esses corpos em linguagem, ou seja, substitui corpos reduzidos a imagens fixas, em corpos poéticos. Convidamos você a se tornar um ouvinte/vidente, que ao mesmo tempo que recebe constrói um tipo de imagem fotográfica, como se revelasse uma imagem latente, uma imagem por vir.

 

Tatiana Altberg e Raquel Tamaio

 

 

 

Sobre os caminhos que levaram ao Retrato Falado

A experimentação fotográfica proposta pelo projeto Retrato Falado, implica em uma relação transversal entre aquele que produz imagem e aquele que a olha. Este tipo de relação entre agentes e receptores é desenvolvida por mim desde 2003 no trabalho que realizo no conjunto de favelas da Maré no Rio de Janeiro: o projeto Mão na Lata, em parceria com a Redes da Maré, que tem como prerrogativa a construção de um espaço investigativo e de criação coletiva, que usa a fotografia e a escrita para construir narrativas autobiográficas e ficcionais. Os trabalhos do Mão na Lata foram expostos em diversas exposições, individuais e coletivas, além de serem publicados em livros e participado de seminários, estabelecendo parcerias como o Instituto Moreira Salles, Casa Daros, Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Observatório de Favelas entre outros.

O projeto Retrato Falado surgiu como desdobramento destas experiências no campo da fotografia e suas dimensões sociais e artísticas.

A fotografia pinhole e as possibilidades abertas por ela em termos de autorrepresentação e autoficção se mostra um potente instrumento reflexivo, o qual revela ao sujeito que uma imagem é impregnada de alteridade, fruto de diversas interações, intra-ações.

Esse processo é a base dos trabalhos que realizo com o Mão na Lata, e é nesse terreno que o projeto Retrato Falado se propôs atuar. A apreensão da linguagem visual, da fotografia e da produção de imagens, pelos jovens em “conflito com a lei”, além da difusão dessa produção por meio da instalação sonora Retrato Falado e da veiculação desta publicação virtual, intentam serem pontes para estabelecer diálogos entre aqueles que vemos e aqueles que nos olham.

 

Tatiana Altberg

 

 

 

Créditos

Concepção_Tatiana Altberg e Raquel Tamaio
Coordenação geral e orientação das oficinas_Tatiana Altberg
Produção_Raquel Tamaio
Educadores assistentes_Juliana de Oliveira, Géssica Nunes, Rafael Franco e Jailton Nunes
Mixagem de som_Gustavo Loureiro
Cinegrafistas_Fagner França, Louise Botkay e Tatiana Altberg
Montagem do vídeo_Alice Furtado
Site_Amapola Rios com Pixfolio
Fotografias de registro_Géssica Nunes, Jailton Nunes, Rafael Franco, Juliana de Oliveira e Fagner França
Confecção laboratório portátil e câmera clara_Ana Claudia M. De Santana
Design gráfico do livreto_Tatiana Podlubny
Desenho Logo_Paula Delecave
Transcrição áudios_Alexandre Altberg, Yanie Macedo, Daniela Macedo e Renata Azzi
Monitores da instalação sonora_Jailton Nunes, Jonas Willame Ferreira, Larisse Paiva, Géssica Nunes, Nicole Cristina da Silva e Rafael Franco.

 

Nossos agradecimentos mais que especiais a todas as meninas e meninos que participaram das oficinas e que partilharam suas histórias.

 

Agradecemos também a: Alexandre Altberg // Alexandre dos Santos Silva // Alexander Martins // Amanda Baptista de Carvalho // Ana Estaregui // Arthur Dias Rego Monteiro  // Carolina B. Máximo Ferreira // Daniella Barbosa  // Daniela Fichino // Diogo Lyra // Eva Randolph // Fabíola de Cássia Freitas Neves // Fernanda Candida Gregório da Silva // Fernando do Nascimento Gonçalves // Giulianne Rocha Tostes // George Fox // Jaíra Farias // João Bina // João Bosco de Camargo Millen // Julio Carlos de Souza // Karen Akerman // Lara Beck Belov // Leonardo Ventura // Maria Aprecida Bento // Maria Mazzillo Costa // Michael Garcia da Rocha // Michele Boche Lopes // Michelle // Oliveira Buzalaf // Miguel Chikaoka // Paula Lacerda // Paula Renata Flores Quaresma // PC Muniz // Pedro Palmeiro // Rúbia Pella Teixeira // Renata Tamaio // Rodrigo Maranhão // Silvia Kremer Vieira da Cunha // Tatiana Devos Gentile  // Tatiana Motta Lima // Vanor Correia do Nascimento // Victor Henrique J. Limas // Yuri Henriques dos Santos de Souza // Zinda Nogueira

E as instituições: CECEL (Coordenação de Educação, Cultura, Esporte e Lazer) // DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) // DICEL (Divisão de Cultura, Esporte e Lazer) // CAI - Baixada (Centro de atendimento intensivo de Belford Roxo) // CENSE PACGC  (Centro de Sócioeducação Professor Antonio Carlos Gomes da Costa - Ilha do governador).